Memórias de um casarão: um monólogo
Vou contar uma história. A minha
história. Fui construído no fim do século dezenove. O meu primeiro dono, o Barão
de Remigiópolis era muito vaidoso e exigente. Daí ter usado material de
primeira qualidade na minha construção. Por exemplo, todo o mármore veio
importado da Itália, de Carrara, mais precisamente. As banheiras das oito
suítes foram importadas da Inglaterra. E o mobiliário veio do Rio de Janeiro. É
de puro jacarandá, cuja madeira foi retirada da mata atlântica. Já os lustres,
espelhos e cristais vieram da Bohemia.
As minhas colunas em estilo greco-romano estão presentes em todos os
alpendres que me circundam. As portas e as janelas são de puro cedro.
A mão-de-obra foi de ex-escravos daqui
mesmo, da fazenda. Após a Lei Áurea não
ficaram vagando pelas estradas, como andarilhos errantes, sem rumo. Muito pelo contrário permaneceram aqui, agora
na condição de moradores. Foi uma pena a princesa Isabel não ter incluído na
lei um artigo que tratasse da Reforma Agrária. No meio dos ex-escravos haviam
muitos com habilidades diversas, inclusive pedreiros, marceneiros e artesãos. Sem
se falar na maioria agricultores. Um engenheiro francês, vindo da Corte, foi o
responsável pelo projeto e execução da obra.
A biblioteca possui o que há de mais
expressivo na literatura brasileira e, quiçá, internacional. A maioria dos
membros da família tem o saudável hábito de leitura. Herança que tem passado de
geração a geração. Daí a explicação para a realização de pelo menos três saraus
literários por ano. Jovens e idosos recitam, cantam e fazem performances
baseados em poemas e prosa dos seus autores favoritos. Uma vez por ano realizam
a feira literária na sede do município, onde o público dialoga com livreiros
expositores e autores de todos os recantos.
Lembro, com saudades do salão de
festas lotado. Casais bailando ao som de valsas de Johann Strauss e Frédéric
Chopin pelas mãos do pianista João Carlos Martins. Inúmeros casamentos tiveram seu começo
naquelas noites memoráveis. Mantenho em minha caixa de recordação as grandes
festas de ano novo, aniversários, casamentos e batizados. Em mim todas as
vozes, bem como as lágrimas dos velórios, começando pelo do barão, em seguida o
de sua esposa.
Mas peço licença para fazer uma
confissão: vivo meio tristonho com o momento atual. O mundo está mudando
velozmente e as pessoas andam muito ocupadas. Ninguém tem tempo pra nada. Nem
para o outro. Cada pessoa, inclusive as crianças, possuem um celular colado no
corpo. Tudo gira em torno da internet
que por sua vez aproxima os distantes e separa os próximos.
Confesso meu lado saudosista. Não
adianta negar, não é mesmo? Pois é. Sinto falta de gente, do vozerio que enchia
todos os meus cômodos; do barulho da criançada correndo em disparada; das
brigas de casais nos casos de ciúme que sempre levavam à separação. A família
do meu primeiro dono era enorme. Em torno de vinte pessoas, contando com as
crianças. As mucamas davam um duro danado para manter tudo arrumado e todo
mundo alimentado.
A mesa farta exibia vários tipos de
carnes vermelhas e brancas, todas de animais criados e abatidos aqui mesmo.
Frutas e hortaliças também eram cultivadas aqui no meu entorno.
Ficaram famosos os churrascos que aconteciam
em feriados e fins de semana. Matava-se um boi, afinal geralmente convidava-se
a vizinhança para aqueles momentos de confraternização. É certo que algumas e
poucas vezes acontecia que um ou outro se excedia na bebida e as consequências
eram sempre as piores. Por exemplo não esqueço o dia em que Jorge assassinou o
primo Patrício. Tudo por causa de uma discussão política. Um era monarquista,
admirador do imperador Dom Pedro II, enquanto o outro era um fervoroso defensor
da república. Conversavam normal e civilizadamente, quando, de repente os
ânimos arrefeceram e foi aí que Jorge acertou um tiro no coração de Patrício.
Esse crime abalou a família que demorou a se acostumar com a ideia de luto.
Testemunhei a passagem de seis
gerações por este teto. A atual é portanto, a quinta. Contando-se a partir do
pioneirismo do Barão de Remigiópolis.
Outro dia tomei um baita susto. É que
chegou aqui um grupo de técnicos que se reuniu com o meu proprietário. Eles
eram do Instituto Histórico e Geográfico e a pauta da reunião dizia respeito a
mim. De repente ouvi que eles falaram que iam me tombar. Pensei: pronto, vão me
demolir! Eu não sabia o significado de tombamento
até que um dos integrantes esclareceu: a partir daquela data eu passaria a ser
preservado e que passaria a ser considerado patrimônio nacional na categoria
museu.
Por fim um apelo: quando você passar diante de um casarão abandonado ou preservado, procure ouvir as vozes que outrora enchiam aquele espaço... de vida! Esta é a minha história.
AUTOR: FRANCISCO DE ASSIS MELO é graduado em Agronomia e Letras. Tem pós-graduação em Planejamento e Desenvolvimento Rural (UFRS) e em Associativismo/Cooperativismo (UFRPE). Lecionou em escolas públicas em Remígio, Itaporanga, Patos, e Teixeira, bem como no Colégio Santa Rita, em Areia. Escreveu artigos publicados, como colaborador para os jornais “Geração”, “O Areiense”, na revista “Fique sabendo”, tendo também publicado matérias em jornais da capital do estado da Paraíba e em redes sociais. Publicou os seguintes livros: Moleques do Palma (2007); O método ITOG e a renda: a experiência do Projeto Cooperar (2012); Vivendo e Aprendendo (2017). A Paraíba na trilha da Coluna Prestes.
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